Estive em Porto Alegre do Norte, cidade que fica às margens da BR 158, no nordeste do Estado.Calor, poeira e latifúndios. Parece que é desses três itens que é feita essa parte do país. Mas, há mais, muito mais que isso. Há rios, águas que cortam as terras e ligam os povos. Há gente, gente de todo canto: nordestinos, sulistas, nortistas, franceses, espanhóis… E a terra é representada pelos filhos daqueles que viram a possibilidade de fazer vida nova no longínquo Mato Grosso, além, é claro, dos indígenas, centenas de povos que veem sua terra ancestral ser tomada por interesses econômicos e vaidades humanas.Conhecer o Mato Grosso, esse grande Estado localizado no Centro-Oeste brasileiro não é fácil. Há contrastes, lutas de toda ordem e uma sensação de que algo está prestes a acontecer.Chegar à capital, partindo de São Paulo é fácil. Um simples vôo comercial de hora e meia deixa o viajante na quente Cuiabá. Mas, engana-se quem pensa que chegar à capital política do Estado será o suficiente para conhecer a realidade mato-grossense. O Mato Grosso real só se alcança com muito chacoalhar nas estradas poeirentas e esburacadas. E, em muitas delas, o asfalto só existe nos mapas do governo. Mapas que datam de décadas atrás, diga-se de passagem. A outra opção é balançar no céu, a bordo de pequenas aeronaves que pousam, inclusive, em pistas de terra, como a de Confresa, no nordeste do Estado, perto da divisa com o Pará e Tocantins.A região é quente, mas não só no sentido literal. Há conflitos sérios que atravessam décadas. Terras indígenas invadidas, sem-terra acampados a espera do seu quinhão, latifundiários que reclamam seu direito de manter suas posses que parecem ultrapassar os limites do horizonte. Nesse cenário, surgem os mártires que deixam suas vidas esvaídas em sangue e seiva. Gente e árvores são esses os mártires de que falo.Há pouco mais de 40 anos a região, até então um mato grosso, floresta densa e cerrado misturado, foi recebendo gente de outras partes do país para colonizar a região antes habitada pelos índios, povo que sabe viver na terra e nas imensas águas, tirando somente o necessário e respeitando seus limites. Mas, o branco que para lá foi, desprovido da sabedoria dos povos indígenas e incentivado pela ganância colocou a floresta no chão, para criar pasto e plantar soja, entre outros vegetais que viram ração animal.
Muitos outros, oprimidos pela fome; também foram tentar uma nova vida no que parecia ser a terra prometida. Lá encontraram intolerância, escravidão e uma vida, certamente, mais difícil que a que deixaram para traz.
Nesta terra, em 1968, chegou o padre catalão Pedro Casaldáliga. Atualmente ele é o Bispo Emérito da Prelazia de São Felix do Araguaia, um homem franzino e extremamente corajoso que comprou brigas com os grandes latifundiários e com o governo militar, pouco depois de fixar-se na cidade que crescia às margens do Rio Araguaia.
Logo que chegou foi recebido por corpos de quatro crianças mortas, colocadas em caixas de sapato. Essa recepção já lhe trouxe a certeza de que sua missão ali seria árdua. Não custou muito para colocar-se ao lado dos pobres e dos índios. E tem sido, nesses anos todos, um lutador incansável pelos direitos desse povo sofrido. Nessa luta sua vida esteve por um fio inúmeras vezes, seja pelas malárias que contraiu – segundo ele, a doença o naturalizou brasileiro – ou pelas tentativas de assassinato.
No livro “Descalço sobre a terra vermelha”, uma biografia escrita pelo também catalão Francesc Escribano, Dom Pedro diz: “Às vezes, acho que estou vivendo de gorjeta, porque escapei da morte muitas vezes…O perigo é ter medo do medo. Ademais, sei perfeitamente por que me ameaçam, e sei que as causas que sustento são mais importantes que a própria morte que possa vir”.
Atualmente, Dom Pedro, ou simplesmente Pedro como é tratado pelos moradores da cidade, vive na mesma casa simples, cuja porta está sempre aberta. Não é mais o Bispo da região, mas o povo reconhece nele a liderança inspiradora que mantém a esperança de uma vida melhor para tanta gente que vive naquelas paragens.
Essa é a minha 3ª. experiência no Estado, pois já estive em Canarana e em Alta Floresta, mas confesso que só agora, em Porto Alegre do Norte, percebo mais claramente os problemas sociais, ambientais e econômicos da região.
Uma fala de D. Pedro contida no livro acima citado dá um panorama dos problemas atuais no Estado: “Antes dos gaúchos e do crescimento econômico que provocaram, a região tinha apenas índios, posseiros, peões e latifundiários. Apenas dois lados. Agora, há uma classe média formada pelos pequenos proprietários e os comerciantes. Esse mundo já não é tão simples como há 30 anos, agora a realidade tem muitos matizes mais”.
Não quero parecer pessimista, tampouco, alarmista. Há inúmeros problemas, é verdade, mas há também muitas iniciativas que buscam a integração e a convergência. Além da figura forte de Dom Pedro, há pessoas abnegadas lutando pela preservação da floresta, representantes dos povos indígenas posicionando-se firmemente e fazendeiros – poucos ainda – que começam a entender que é preciso criar práticas mais sustentáveis.
Pode parecer utopia, mas acredito que um dia se sentará à mesma mesa, defendendo as mesmas causas, os que hoje se declaram inimigos. É preciso acreditar que a Amazônia será palco de uma revolução humana integradora. É preciso dar um basta à desagregação.
Feliz da vida ao lado de Dom Pedro Casaldáliga
23 de abril de 2010